As artes liberais e as artes mecânicas

Por Marcelo Albuquerque

As Artes Liberais são habilidades desenvolvidas na Antiguidade Clássica, consideradas essenciais para a pessoa livre, baseadas na aquisição de educação erudita, a fim de que esta tome parte ativa na vida cívica e pública. Elas formam a base do currículo nas universidades medievais, sendo elas:

Trivium: a gramática, a retórica, a dialética

Quadrivium: a música, a astronomia, a aritmética e a geometria.

Na Idade Média, a arte e a arquitetura se situavam nas artes mecânicas, mas gozavam de respeito e honra. No Renascimento, intelectuais, artistas e arquitetos, do porte de Alberti e Leonardo da Vinci, reivindicarão a elevação da pintura, da escultura e da arquitetura à condição de Artes Liberais, conferindo aos artistas e arquitetos um nível social jamais alcançado dentro das hierarquias antigas.

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Filosofia e As Sete Artes Liberais. De Herrad de Landsberg, da obra Hortus Deliciarum. Século XII. Fonte: Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Artes_liberais. Acesso em: 25 set. 2016.

Não podemos, aqui, confundir as artes medievais com a moderna concepção de artes, relacionadas às artes plásticas ou a teatro, principalmente. Martianus Capella, no século V, e Boécio, no século VI, realizaram estudos sobre as sete Artes Liberais, conectando o pensamento clássico com o medieval, sendo elas definidas até o século X como a gramática, a retórica, a dialética (trivium), a música, a astronomia, a aritmética e a geometria (quadrivium).

Catedral de Chartres, França. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2019.

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Campanário de Giotto, 1298-1359. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

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Baixos relevos do campanário com programa iconográfico: Da direita para a esquerda: a arte da navegação a remo, Hércules e Caco, a arte do cultivo, o carro de Téspis. Os relevos foram substituídos por cópias e os originais se encontram no Museu do Duomo. Os desenhos são atribuídos a partir de uma concepção de Giotto, por volta de 1337, e sua execução é atribuída a Andrea Pisano e sua equipe, entre eles seu filho Nino Pisano, Alberto Arnoldi, Gino Micheli da Castello, Maso di Banco, Mestre de Armadura e Mestre de Saturno. Intervenções posteriores são atribuídas a Luca della Robbia (1437-39). Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

Na Idade Média os mestres construtores, pintores e escultores se reuniam em guildas, ou seja, corporações de ofícios. Eram consideradas artes mecânicas e gozavam de respeito e direito a honra. Os mestres de ofícios tinham títulos e respeito. Muitas catedrais góticas europeias apresentam, nas suas fachadas, as profissões dos mestres construtores, arquitetos e artistas. Como recorda Reale, Hugo de São Vitor (1096-1141), professor medieval, deu espaço às artes mecânicas, que corajosamente as alinhava com as artes liberais (REALE, 2003, vol.2, p. 180). Além das artes plásticas e arquitetura, estão as artes têxteis, a fabricação de armas, o teatro, a navegação, a agricultura, a caça e as técnicas de conservação de alimentos. O estudo das artes mecânicas elevaria a condição humana. No Renascimento, intelectuais, artistas e arquitetos, do porte de Alberti e Leonardo da Vinci, reivindicarão a elevação da pintura, da escultura e da arquitetura à condição de Artes Liberais.

Florença e o quattrocento

Por Marcelo Albuquerque

 

A primeira fase renascentista está focada na cidade de Florença, que oferece a possibilidade de estudos superiores em círculos acadêmicos não associados à Igreja ou instituições tradicionais, mas financiadas pelos ricos banqueiros, como a família Médici.  As artes plásticas e a arquitetura formulam regras de perspectiva linear, reorganizando a representação espacial. A redescoberta de modelos antigos, tanto em arquitetura, pintura e escultura, se baseiam nos princípios de harmonia, proporção e simetria, refletindo a dimensão harmônica do homem na sua relação com a natureza e com a criação divina, bem representada no Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, um reestudo das proporções conhecidas e aplicadas desde a Grécia Clássica e transmitida por Vitrúvio. A pintura do Renascimento modela-se com a influência da arte de Flandres no início do século XV, dos pintores flamengos, que introduzem um renovado naturalismo na arte e a técnica da pintura a óleo sobre tela, além da introdução dos retratos nos ambientes privados, de forma a enaltecer a figura cívica dos retratados, como veremos mais adiante.

 

A ascensão de Florença como potência comercial, intelectual e artística remonta ao período da Baixa Idade Média, a partir do século X, quando a cidade se tornou município autônomo em 1115, marcada por lutas que se estenderam durante o século XIII, como a disputa entre os gibelinos, partidários do Sacro Império Romano, e os guelfos, a favor do papado romano. Essa política interna não impede que a cidade floresça e se torne uma das maiores repúblicas medievais da Toscana. Após a Peste Negra de 1348, Florença se torna o grande centro de poder da Toscana, superando sua arquirrival Siena, que não conseguirá se reerguer como Florença após a Peste.

 

A partir da década de 1430, a família Médici inicia uma política de mecenato para formar e patrocinar os melhores artistas, arquitetos, escritores, humanistas e filósofos do período, ao longo de décadas, como Filippo Brunelleschi, Michelozzo, Verrocchio, Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarroti. Maquiavel, personagem importante do século XV, tem sua obra literária, “O Príncipe”, muitas vezes vista como uma legitimação da tortuosidade e também do abuso político. As atividades das academias, patrocinadas pela elite florentina, fora do círculo do ensino tradicional católico, se dividiam em diversas áreas do conhecimento, das quais se destacam as correntes científicas (física, química e história natural) e as relacionadas à filologia e linguagem. Em 1527 os florentinos expulsam os Médici, reestabelecendo uma república, mas em 1532, os Médici retornam como duques de Florença, conquistando a República de Siena em 1555. Em 1569 é criado o Grão-Ducado da Toscana.

 

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Piazza della Signoria: o magnífico Palazzo Vecchio. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Piazza della Signoria: Loggia dei Lanzi. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

O centro político de Florença é a Piazza della Signoria, com o magnífico Palazzo Vecchio, edifício gótico construído sobre um teatro romano, como se vê na figura acima. Em frente, a Loggia dei Lanzi assume um papel de galeria de obras-primas da escultura.  Ao seu lado, a Galeria Uffizi é um dos maiores museus de arte do mundo, reunindo uma das mais importantes coleções de arte ocidental. Foi concebida para abrigar os escritórios da burocracia do Médici no século XVI, os escritórios de ofícios (Ufizzi).

 

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Galeria Uffizi, Florença. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

A catedral gótica de Santa Maria del Fiore protagoniza o grande divisor de águas que marcará o início da era renascentista, com sua majestosa cúpula de Fillipo Brunelleschi (1377-1446). Brunelleschi foi arquiteto, engenheiro, escultor e ourives, e é considerado, ao lado de Masaccio e Donatello, um dos fundadores do Renascimento. A ele credita-se a invenção da perspectiva de um único ponto de fuga, ou perspectiva linear. Depois de sua aprendizagem como um ourives e uma breve carreira como escultor, dedicou-se à arquitetura, após perder o concurso das portas do Batistério para seu rival Lorenzo Ghiberti. Brunelleschi faz um longo estudo arquitetônico das ruínas de Roma, e retorna à Florença para um novo concurso, para a construção da cúpula de Santa Maria del Fiore, enfrentando novamente seu rival Ghiberti.

 

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Santa Maria del Fiore, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Seção e cúpula de Filippo Brunelleschi. Fonte: Wikipédia. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Filippo_Brunelleschi&gt;. Acesso em: 11 out. 2016.

 

Com Brunelleschi nasce a figura do arquiteto moderno, reconcebendo os processos técnicos e conceituais da arquitetura, diferentemente das tradições dos mestres construtores medievais, fortalecendo o papel do projeto arquitetônico e do planejamento da construção. Com Brunelleschi, a arquitetura deixa de se firmar como uma arte mecânica, elevando-se a uma categoria intelectual de arte liberal, fundada na matemática, na geometria e na erudição histórica. Brunelleschi privilegia, na arquitetura, uma pureza na linguagem romana de proporções monumentais, valorizando os arcos e colunas, como visto nas basílicas romanas, ritmos modulares correspondentes à números inteiros, seguindo proporções precisas para todo o edifício. Os elementos decorativos se afastam completamente das tradições do Trecento, retomando a linguagem latina em oposição ao bizantino e ao gótico.

 

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Escultura de Brunelleschi olhando para a sua cúpula da catedral, e Arnolfo di Cambio, em frente a Santa Maria del Fiore. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Brunelleschi começou a estudar o problema da cúpula de Santa Maria del Fiore, desde o início do século XV. O tambor octogonal foi erguido entre 1410 e 1413, porém uma cúpula tão grande nunca tinha sido realizada com as tradicionais técnicas, com uso de andaimes e cimbramento de madeira, parecendo inviável sua conclusão. Em 1418, foi editado o famoso concurso público para resolver o problema do domo, de forma a detalhar as soluções para as costelas, o cimbramento, as coberturas, os materiais e as ferramentas necessárias. Segundo Argan, em “História da arte como história da cidade”, além dos problemas técnicos de engenharia, a cúpula também deveria se impor, harmonicamente, sobre o espaço urbano, de forma a simbolizar o poder de Florença. Filippo Brunelleschi e seu rival Lorenzo Ghiberti foram nomeados para o empreendimento.

 

A obra da cúpula começou em 1420. O domo é constituído de duas cúpulas, com passarelas e escadas na lacuna entre elas. A obra foi auto sustentada por andaimes aéreos e cimbramento que não se apoiavam diretamente no piso da basílica, proposta que gerava muita desconfiança dos trabalhadores. Mais adiante, Ghiberti deixará de ser protagonista da construção, ao lado de Brunelleschi, por não conseguir resolver problemas estruturais. Brunelleschi assume a chefia de toda a obra, concluindo-a e levando uma parte considerável dos créditos da construção. A cúpula foi edificada em pedra, até os primeiros sete metros e, em seguida, de tijolo, feitas com a técnica “espinha de peixe”, que funciona como uma espécie de anel em espiral autossustentada. A cúpula exterior é constituída de tijolos vermelhos intercalados com oito costelas brancas. A cúpula interior, menor e robusta, suporta o peso da parte exterior. A lanterna, já concebida com elementos clássicos em detrimento do gótico, torna-se um mirante, sendo possível visita-la como um dos principais pontos turísticos de Florença.

 

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Cúpula de Santa Maria del Fiore, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Técnica de construção em alvenaria de Brunelleschi baseada no opus spicatum, no interior da cúpula de Santa Maria del Fiore, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Lanterna renascentista de Santa Maria del Fiore, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Interior da cúpula de Santa Maria del Fiore, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Outro ponto admirável foi o sistema de guindaste desenvolvido por Brunelleschi para erguer os materiais de construção. Um par de cavalos amarrados a um eixo vertical fazia o sistema girar. O arquiteto aplicou um sistema de guinchos e roldanas com engrenagens derivadas dos utilizados no fabrico de relógios capazes de aumentar a sua força, permitindo que se alternasse a subida e descida de materiais sem alterar a direção dos cavalos. Leonardo da Vinci estudou esses sistemas e aplicou em algumas de suas famosas criações.

 

O Asilo dos Inocentes, iniciado em 1419, é considerado o primeiro edifício construído de acordo com cânones clássicos. Serviu como orfanato e complexo hospitalar. As longas varandas agem como elementos intermediários entre o hospital e a praça, compostas por abóbadas de nervuras, arcos e colunas de capitéis coríntios. As cores austeras, de gesso branco e pedra cinza, tornaram-se um traço harmonioso e limpo, característico do Renascimento florentino. Os medalhões de cerâmica, sobre cada coluna das varandas, foram acrescentados por Andrea della Robbia, sobrinho de Luca della Robbia, em 1490, representando as inocentes crianças pequenas.

 

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Asilo dos Inocentes, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Asilo dos Inocentes, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Asilo dos Inocentes, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Em 1429 foi confiado a Brunelleschi a reconstrução do claustro franciscano de Santa Croce que, mais tarde, tornou-se a capela de Pazzi, financiado por Andrea de Pazzi. O edifício foi concluído após 1470, por Giuliano da Maiano. Sua medida da largura, altura e diâmetro da abóbada remetem a um cubo imaginário encimado pela cúpula. Foram adicionados dois braços laterais, cobertos por uma abóbada de berço, além de um altar na abside. Assim como o Asilo dos Inocentes, a ornamentação é nobre e austera, com gesso branco e pedras cinzas, com medalhões de cerâmica de Luca della Robbia. Seu pórtico da fachada frontal remete a um arco triunfal, sustentado por colunas e um grande arco de volta perfeita.

 

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Capela da família Pazzi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Medalhões de cerâmica de Luca della Robbia. Capela da família Pazzi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Brunelleschi: Capela da família Pazzi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Brunelleschi: Capela da família Pazzi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Brunelleschi: nave central e lateral de San Lorenzo, Florença, 1441-1481. Podemos observar a composição derivada do Asilos dos Inocentes nas arcadas das naves. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Leon Battista Alberti, célebre artista, arquiteto, historiador e filósofo do Renascimento, é autor dos tratados De Re Aedificatoria (1443-52), De Pictura (1540) e De Statua (1568), que apresentam os princípios estéticos do pensamento renascentista, baseados no estudo da Antiguidade Clássica e na objetividade da observação da natureza. Isso não significa uma imitação direta da natureza objetiva, mas o modelo ideal de beleza de caráter neoplatônico, como a harmonia de todas as partes em relação ao todo, proporção e escala humana. Alberti estudou ruínas e objetos artísticos da Antiguidade, revalorizando o Tratado de Arquitetura do romano Vitrúvio. Entre as discussões de Alberti estava o efeito social da arquitetura, sobre a cidade planejada e a paisagem.

 

De Alberti, para este capítulo, destaco a basílica de Sant’Andrea em Mantova. Seu desenho é renascentista por excelência, sendo concluída anos após a morte de Alberti. Sua fachada remete aos arcos triunfais romanos, com um arco único, baseado em arcos triunfais antigos como o Arco de Tito ou o Arco de Trajano. Sob o arco forma-se uma espécie de pórtico com abóbada de berço e caixotões, marcando o ponto entre o interior e exterior. O arco é ladeado por pilastras coríntias, com paredes divididas entre janelas e nichos. A fachada está inscrita em um quadrado. Sobre o frontão vemos um arco que se afasta da fachada, apontando a altura da nave, enfatizando a monumentalidade e iluminação da nave, impedindo que a luz incida diretamente no interior da igreja. O interior forma uma cruz latina, com uma única nave de abóbada de berço e caixotões, com capelas laterais com base retangular e emolduradas por arcos de volta perfeita, acompanhando a fachada. O cruzeiro possui uma cúpula. O altar possui abside profunda que encerra o espaço da nave. A cripta contém relicários com terra que, segundo a tradição, são encharcadas com o sangue de Cristo colhido pelo soldado romano Longinus.

 

Sant’Andrea em Mantova. Fonte: Wikipédia. Disponível em: <https://it.wikipedia.org/wiki/Basilica_di_Sant%27Andrea_(Mantova)&gt;. Acesso em: 11 out. 2016.

 

Alberti é um dos intelectuais responsáveis pela elevação da arquitetura, pintura e escultura para as artes liberais, consideradas artes mecânicas durante a Idade Média. Junto ao escultor Lorenzo Ghiberti, avançaram para uma teoria artística elaborada na distinção de várias facetas do processo artístico. Ghiberti produziu pesquisas no campo da ótica, no comportamento da luz em diversas circunstâncias e nas inter-relações do olho e cérebro na percepção. Alberti é o pioneiro na literatura artística a constituir a pintura como objeto de teoria e doutrina sistematizadas, montando seu discurso baseado nas artes liberais com geometria e retórica. Ele dividiu a pintura em três partes: circunscrição (desenho das formas), composição e “recepção das luzes” (receptio luminum), que inclui a cor. As cores, para Alberti, variam em razão da luz. As cores primárias seriam quatro, associadas aos quatro elementos: vermelho (fogo), azul (ar), verde (água) e cinza (terra), e todas as outras cores seriam misturas dessas. Ele preocupou-se em descrever os elementos cognoscíveis da perspectiva linear e aérea e exigia que o pintor fosse culto nas artes liberais, estudasse os poetas, os gestos, as expressões e os movimentos do corpo humano.

 

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Leon Batista Alberti: Palazzo Rucellai. Fonte: Wikipédia. Disponível em: <https://it.wikipedia.org/wiki/Leon_Battista_Alberti&gt;. Acesso em: 12 abr. 2017.

 

O Palazzo Rucellai (1446-1451) possui desenho da fachada com formas clássicas, aplicando o rusticismo na alvenaria, coroado com uma imponente cornija. O embasamento baseia-se no opus reticulatum romano. É composto de três níveis, divididos por cornijas e por pilastras que sobrepõe as diferentes ordens clássicas; assim como o Teatro de Marcelo e o Coliseu, comentados anteriormente (o primeiro piso é dórico, o segundo jônico e o terceiro coríntio).  A medida em que a parede se eleva, a cantaria vai se tornando mais polida e bem-acabada, se afastando do rusticismo do primeiro nível.  As alturas das pilastras diminuem gradualmente de tamanho em direção aos andares superiores, criando uma sensação de monumentalidade.

 

Assim como o Palazzo Rucellai, o Palazzo Medici-Ricardi (1444-64), de Michelozzo, possui três níveis sobrepostos com tratamentos diferentes, sendo o primeiro nível rusticado com janelas inseridas em arcos. O projeto original foi encomendado a Brunelleschi, porém os contratantes repassaram à Michelozzo a edificação, alterando o desenho do edifício. O pátio interno possui colunas coríntias, como um peristilo romano. O edifício estabelece um padrão cívico no uso dos elementos clássicos com fachadas imponentes, como o Palazzo Medici-Ricardi de Michelozzo.

 

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Palazzo Medici Riccardi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Palazzo Medici Riccardi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Michelozzo. Pátio do Palazzo Medici-Ricardi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Janelas ajoelhadas (finestre inginocchiate), atribuídas a Michelangelo (1517). Palazzo Medici Riccardi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Outro palácio que merece destaque é o Palazzo Strozzi, também em Florença. De forma cúbica, foi concebido em torno de um pátio central, com três andares. Sua fachada remete aos palácios anteriores, tendo o piso térreo janelas retangulares, enquanto os andares superiores possuem janelas arqueadas, sobre bordas serrilhadas.

 

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Palazzo Strozzi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Palazzo Strozzi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Palazzo Strozzi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Palazzo Strozzi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Pátio interno do Palazzo Strozzi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Santa Maria Novella possui o desenho renascentista da fachada da nave principal, por Alberti, edificada entre 1448 a 1470, reformando a antiga fachada medieval, conservando o nível mais baixo com os antigos seis nichos góticos. Foram empregados os mármores policromados e o desenho tradicional toscano das igrejas florentinas, como San Miniato al Monte e o Batistério de Florença. A janela ocular também foi preservada.

 

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Santa Maria Novell, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Santa Maria Novella. Nave central e naves laterais. Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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Fachada de Santa Croce. Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Entre as pontes que cruzam o rio Arno, destaca-se a Ponte Vecchio, única no mundo, com suas características lojas de joalharia construídas sobre a ponte. A parte superior das lojas é atravessada pelo Corredor Vasari, uma passagem que liga o Palazzo Vecchio ao Palácio Piti, do outro lado do rio, como forma de garantir privacidade e segurança aos governantes de Florença.

 

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Ponte Vecchio vista de dentro da Galeria dos Uffizi. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Um dos adventos mais importante para a pintura do Renascimento foi o desenvolvimento da tinta a óleo a partir da linhaça, técnica criada nos Países Baixos e utilizada pelos irmãos Van Eyck. O fácil transporte da pintura, que agora podia ser enrolada em seu suporte de tecido, permitiu o intercâmbio entre escolas de pinturas italianas e flamengas, ampliando o conhecimento dos artistas em diversos pontos da Europa simultaneamente. A tinta a óleo produz mais brilho que as têmperas, acentuando sensivelmente a cor, permitindo maior grau de detalhamento, que unido ao pensamento filosófico da época, possibilitou a conquista do naturalismo por parte dos pintores. Isto amplificou a arte do retrato cívico, uma das mais importantes contribuições da pintura renascentista.

 

Mona Lisa, 1503-07. Óleo sobre tela. Museu do Louvre, Paris. À direita, Dama com Arminho, de 1485.  Museu Czartoryski, Cracóvia. Fonte: Wikipédia”. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Leonardo_da_Vinci&gt;. Acesso em: 11 out. 2016.

 

Leonardo da Vinci é um paradigma da arte renascentista, e sua trajetória na oficina de Verrocchio como aprendiz nos esclarece muito sobre a formação de um artista nesse período. A oficina projetava, realizava e ensinava atividades diversas, como pinturas e esculturas em variadas técnicas, as chamadas “artes menores” e decorativas, trabalhos de carpintaria, mecânica e arquitetura, onde o aluno e aprendiz podia ser formado em várias técnicas. A geração de Leonardo que estudou na mesma oficina incluiu grandes mestres como Sandro Botticelli, Perugino e Ghirlandaio. Leonardo, mesmo depois de ter reconhecida sua independência como artista, colaborou com Verrocchio ainda por alguns anos. Conta-se que, segundo a tradição, Verrocchio, ao ver o anjo da esquerda pintado majestosamente por Leonardo, na obra O Batismo de Cristo, de 1472 a 1475, pintada a duas mãos, decidiu abandonar a pintura, ao ver que seu talentoso discípulo o havia superado.

 

Visitantes na Galeria Uffizi em frente ao O Batismo de Cristo, 1472-1475, de Verrocchio e Leonardo da Vinci. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

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A Anunciação, de 1472-1475, de Leonardo da Vinci, protegida com blindagem de vidro. Galeria Uffizi, Florença. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Para Leonardo da Vinci, assim como Alberti, a pintura deve se afastar das artes mecânicas para aproximá-la das artes liberais, na qual o desenho é o meio intelectual predominante, da mesma forma que o seu ensino. A escultura, do seu ponto de vista, permaneceria uma arte mecânica, por fazer transpirar e exaurir fisicamente, situação modificada posteriormente pelo gênio de Michelangelo, adversário declarado das opiniões de Leonardo. Sendo assim, os artistas do Renascimento gozaram do prestígio intelectual.

 

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A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. 1495-98. Santa Maria delle Grazie, Milão. Fonte: A Última Ceia. In: Site “Wikipédia”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Leonardo_da_Vinci&gt;. Acesso em: 11 out. 2016.

 

No “Tratado de Pintura”, Leonardo da Vinci faz investigações sobre a importância dos estudos da natureza, da perspectiva aérea, a preocupação com a modelagem tonal (sfumato), o estudo das sombras no planejamento e o desejo de experimentar novas técnicas de pintura. Essas novas técnicas incluíam tentativas de pintura de afresco à óleo, fixando a tinta através de calor, mas que se mostrou desastrosa, como ocorreu no célebre afresco da Última Ceia. Suas observações dos efeitos da cor prenunciam fundamentos do Impressionismo. Sua posição é aristotélica e sua crença está na observação e representação da realidade sensível e visível como forma de obtenção do conhecimento.

 

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O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli. Fonte: Wikipédia. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Uffizi&gt;. Acesso em: 11 out. 2016.

 

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Visitantes na Galeria Uffizi em frente ao Nascimeto de Vênus, de Botticelli. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Michelangelo inicia seus estudos em 1487, aos doze anos, na oficina de Domenico Ghirlandaio, momento no qual conhece os mestres italianos e alemães do desenho e da pintura, especialmente do trecento em diante. Mais adiante, começou a frequentar e estudar no jardim de San Marco, a Academia de Lorenzo, o Magnífico, em Florença, onde teve contato com grandes coleções de esculturas antigas dos Médici, junto a outros jovens talentosos, além do contato com as artes liberais e as artes mecânicas tradicionais e estudos contemporâneos do Renascimento. Ludovico passa a ser o protetor e mecenas do jovem gênio. Assim foi capaz de conhecer importantes personalidades de seu tempo e principais clientes, dentro e fora da Igreja.

 

Após a morte de seu patrono e seu colapso político, Michelangelo juntou-se aos novos valores pregados por Savonarola, convicto na reforma da Igreja, cujos valores estavam ameaçados devido à política contemporânea, à arte paganizante de seu tempo e aos costumes em geral. Ao ser condenado na fogueira, o movimento de Savonarola se dissipa e Michelangelo em breve iniciará suas viagens para fora de Florença, concebendo diversas obras primas, estabelecendo-se prioritariamente em Roma, a partir de 1496. No Vaticano, Michelangelo estuda as coleções de esculturas antigas e acompanha escavações, restaurando algumas obras. O período helenístico grego influenciará decisivamente a obra do gênio. Desse período vem a encomenda da Pietà em mármore de Carrara para a igreja de Santa Petronilla, que hoje está na basílica de São Pedro no Vaticano. O grupo escultórico inova em relação à escultura italiana tradicional de Pietà, adotando a composição piramidal. O acabamento é primoroso, desde os pequenos detalhes que produzem o efeito de mármore translúcido e maleável. Ela é considerada como sua primeira grande obra-prima e marca o início de sua autoconsciência como gênio.

 

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Pietà, de Michelangelo. Mármore. Basílica e São Pedro, Vaticano. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

Michelangelo volta para Florença em 1501 e realiza diversas obras na Toscana, como estátuas sacras para Siena e Florença, aproveitando o prestígio que já gozava devido aos seus anos em Roma. No mesmo ano, começa a trabalhar no “Gigante”, e em três anos completa o Davi, encomendado para a área externa da abside do Duomo de Florença. O artista retrata o herói de forma incomum, em relação à iconografia e à tradição: nu, com aparência calma e serena, a ponto de reagir contra Golias. O Davi é associado ao poder da republica de Florença diante de seus adversários.  Torna-se imediatamente uma obra-prima e símbolo da cidade, sendo deslocada para a Piazza della Signoria. Uma cópia foi realizada, ficando ao livre, enquanto o original está preservado na Galeria da Academia de Florença.

 

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Davi de Michelangelo, Galeria da Academia de Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

 

A partir do século XVI, Roma ressurge na sua grandeza como a capital dos papas, e se tornará o centro erudito das artes, particularmente nos trabalhos de Michelangelo e Rafael no Vaticano. Rafael Sanzio (1483-1520) inicia suas atividades com a presença de Perugino e sua oficina. Rafael demonstrou interesse nos afrescos e esculturas de Michelangelo, e a história apresenta grandes disputas entre Bramante e Rafael contra Michelangelo. Rafael inclui um retrato de Michelangelo e de Leonardo da Vinci no afresco A Escola de Atenas e em outros trabalhos posteriores. Rafael, profundo admirador de Michelangelo e Leonardo, tornou-se a figura que compôs a tríade de gênios pintores da Renascença.

 

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Rafael. A Escola de Atenas, 1509. Vaticano. Fonte: Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Rafael&gt;. Acesso em: 11 out. 2016.

 

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Ressurreição de Cristo, c. 1499/1502. Museu de Arte de São Paulo. Foto: Marcelo Albuquerque, 2016.

 

 

[1] ARGAN, 1998, p. 74.

 

Renascimento: panorama

Por Marcelo Albuquerque

A arte e a arquitetura renascentista foram desenvolvidas ao longo dos séculos XV e XVI, apresentando um rompimento com as tradições medievais, porém não totalmente separados dos costumes e valores medievos, mas com um consciente rompimento com a estética gótica. São inseridas novas relações entre a arte e arquitetura, promovendo a imagem dos personagens como profissionais liberais, portadores de uma erudição à altura dos grandes gênios da história.  Esses personagens são orientados na compreensão e valorização das linguagens da Antiguidade Clássica sem, no entanto, fazer apenas cópias dos modelos antigos. O século XV eleva as figuras de Filippo Brunelleschi, Masaccio, Donatello e Alberti, que definem os princípios de uma arte e arquitetura classicistas, através de tratados, com maior naturalismo na pintura, idealismo e desenvolvimento da perspectiva, aliados às grandes descobertas empreendidas pelo globo terrestre.

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Mapa da Europa em 1500. Fonte: https://www.ime.usp.br/~tycho/participants/psousa/cursos/materiais/mapas_historicos.html. Acesso em: 21 abr 2018.

Observaremos que, para muitos autores, a origem do Renascimento é apontada na construção do domo da Catedral de Santa Maria del Fiore por Brunelleschi, em Florença. Posteriormente, Leonardo Da Vinci se tornará, certamente, um dos personagens mais famosos e populares desse período. O início do século XVI apresenta o desenvolvimento e maturidade do Renascimento, tendo como ícones Bramante e Rafael e Michelangelo, junto aos personagens das escolas coloristas de Veneza, como Ticiano. Nesse instante, o Renascimento abre caminho para o Maneirismo. Se destacam arquitetos como Andrea Palladio, o próprio Michelangelo e Giulio Romano. Considera-se que o Maneirismo seja dotado de pensamentos anticlássicos que reformulam as normas da linguagem clássica, ao mesmo tempo em que a glorifica, conferindo uma grande autonomia criativa. O Maneirismo costuma ser visto como uma dinâmica atrelada ao Renascimento, porém reivindicando um novo modelo “à maneira” clássica. O Renascimento também se caracteriza pela propagação das ideias italianas pela Europa, considerando um Renascimento distinto em diversas regiões do subcontinente europeu, como o Renascimento espanhol, o francês, o flamengo e o britânico, entre outros.

O Renascimento desenvolve-se na Itália do final da Idade Média, a partir de Florença, no século XV, marcando o início da era moderna, estendendo-se até o século XVI. Ele é oriundo dos desenvolvimentos do século XIII e XIV, conhecidos como Duecento e Trecento. Renova-se um interesse pelos estudos clássicos da filosofia, literatura e artes, contextualizando-os na sua contemporaneidade. Não significa que a Idade Média havia abandonado estes estudos, pelo contrário, na realidade, havia-se conservado muito da tradição clássica pelos eruditos católicos, pelos mosteiros e pelas universidades em geral. As valiosas contribuições orientais, através dos árabes e dos eruditos gregos e bizantinos refugiados da recém conquistada Constantinopla, pelos turcos otomanos, inundaram a Europa Ocidental de conhecimentos e referências da Antiguidade e da produção intelectual do período medieval. Porém, durante a Idade Média, a Europa passou por alguns momentos de “renascimentos” da cultura clássica, como o empreendido no período carolíngio, no Otoniano, e pela filosofia escolástica, mas nenhuma com as características do Renascimento italiano do século XV. Sendo assim, o ano de 1453, data da conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos, pondo fim ao Império Bizantino, marca o encerramento da Idade Média e início do Renascimento. O período é marcado pelo surgimento e consolidação de estados modernos, como as monarquias nacionais da França, Inglaterra e Espanha, sendo que esta última expulsa de vez os árabes da península Ibérica e patrocina as viagens dos descobrimentos ao lado dos portugueses. A descoberta do Novo Mundo promove uma nova ordem econômica e social, deslocando consideravelmente o eixo comercial do Mediterrâneo para o Atlântico, advindas das expansões coloniais, fomentando a economia mercantilista.

O termo “renascimento ” foi usado por Giorgio Vasari, em 1550, em seu tratado Vidas dos melhores arquitetos, pintores, escultores italianos de Cimabue até à nossa época, para indicar um ciclo que, a partir de Giotto, se estabeleceria com Masaccio, Donatello e Brunelleschi no rompimento com a estética bizantina e retorno para a romana.  Para Vasari, o renascimento culmina em Leonardo e Michelangelo, capazes de superar os próprios antigos. O termo “Renaissance” se define como resultado da historiografia do século XIX, descrita por Jules Michelet e Jacob Burckhardt.

Na filosofia, o ressurgimento do neoplatonismo e do hermetismo[1] será fundamental para este florescimento das expressões artísticas renovadas no interesse na Antiguidade. A partir dessas referências, desenvolve-se um ambiente na cidade de Florença, em especial, para as ideias de humanismo, nascido da literatura do século XIV, com renovado interesse em estudos clássicos, especialmente por Boccaccio, Dante Alighieri e Francesco Petrarca. Estes autores foram responsáveis por entender uma nova mentalidade emergente, diferente do período que corresponde ao que chamamos de medieval, situado entre seu tempo e o Império Romano do Ocidente.

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Panorama de Florença a partir da Piazzale Michelangelo. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

No campo religioso, além da medieval disputa entre cristãos e muçulmanos, a partir do século VII, e do cisma entre católicos e ortodoxos em 1054, a Reforma Protestante promove um novo cisma dentro da Igreja Católica e no Ocidente, abrindo caminho para as novas correntes protestantes, como a Calvinista e a Luterana. A reforma propunha uma renovação da cristandade e da própria Igreja Romana em si, marcada pelas denúncias de corrupção, extravagancias, decadência e divergências ideológicas e políticas complexas.

Tratados matemáticos gregos foram traduzidos no século XVI, influenciando os estudos de astronomia de Nicolau Copérnico e Kepler, e, posteriormente, no período barroco, os estudos de Galileo. A geografia foi transformada por novas informações científicas e pelas grandes navegações. Entretanto, nada disso seria possível sem a invenção da prensa de Gutenberg, no século XV, revolucionando o fluxo do conhecimento e a difusão de informações, aumentando o número de livros em circulação.

Sobre as fortificações das cidades renascentistas, vale o exemplo de cidades como Lucca. Os avanços no uso da pólvora revolucionaram as táticas militares entre 1450 e 1550, introduzindo a artilharia no campo de batalha, inutilizando os sistemas medievais de muralhas de castelos e cidades, que tiveram que se readequar à novidade, culminando nos desenhos das muralhas Vauban do século XVI.

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Muralhas Renascentistas de Lucca. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

[1] O Hermetismo se baseia no Caibalion (tradição ou transmissão), uma compilação comentada anônima do Corpus Hermeticus e Tábua de Esmeraldas.  Baseia-se nas Sete leis herméticas aplicadas ao homem e ao universo. O deus Thoth e Ibis transformados em Hermes Trismegistus, “três vezes sábio”, o que leva os conhecimentos divinos ao homem. Se relaciona com o Livro dos Mortos egípcio, compilação de vários papiros de escribas. Acredita-se que Hermes Trismegistus seja um nome genérico, relacionado à vários personagens históricos. Os Mistérios herméticos são conhecimentos passados apenas para virtuosos, nos ambientes iniciáticos da Antiguidade. Marcilio Ficcino lidera em Florença a Academia Platônica Florentina, que estuda o Hermetismo, e o Domo de Siena apresenta uma figura de Hermes Trismegistus, evidenciando uma relação medieval entre essa figura e conhecimentos eruditos do Catolicismo, porém será considerado herético posteriormente (gnose).

Cor e os tratados do Renascimento

Por Marcelo Albuquerque

O arquiteto e humanista Leon Battista Alberti e o escultor Lorenzo Ghiberti avançaram para uma teoria artística mais elaborada na distinção de várias facetas do processo artístico. Ghiberti produziu sérias pesquisas no campo da ótica, no comportamento da luz em diversas circunstâncias e nas inter-relações do olho e cérebro na percepção. Cennini se concentra na oficina de receitas e preceitos técnicos das cores e tintas. Segundo Leon Kossovitch, o texto de Alberti é o primeiro na literatura artística a constituir a pintura como objeto de teoria e doutrina sistematizadas, montando seu discurso com geometria e retórica (artes liberais)[1]. De acordo com Kossovitch, as cores são pouco desenvolvidas em Alberti, assim como nos autores do séc. XVI em geral, tornando-se objeto de discussão mais aprofundado no século seguinte. Reconhece a presença, no Quattrocento, da distinção pliniana de cores austeras e floridas, as relações de composição entre as cores e os preceitos de substituição do ouro bizantino pelas tintas[2]. Alberti dividiu a pintura em três partes: circunscrição (desenho das formas), composição e “recepção das luzes” (receptio luminum), que inclui a cor. As cores, para Alberti, variam em razão da luz. Branco e preto expressam luz e sombra, e todas as outras cores variam de acordo com a luz e sombra aplicadas nelas. Mas não são cores verdadeiras, e sim moderadoras das outras cores, formando espécies. As cores primárias seriam quatro, associadas aos quatro elementos: vermelho (fogo), azul (ar), verde (água) e cinza (terra). Todas as outras seriam misturas dessas. Os cinzas são entendidos como as cores e detritos da terra, sendo eles a chave para a coerência tonal de uma composição[3]. Ele preocupou-se em desenvolver os elementos cognoscíveis da perspectiva aérea e exigia que o pintor fosse culto nas artes liberais, estudasse os poetas, os gestos, as expressões e os movimentos do corpo humano[4].

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Cores primárias de Alberti e sua relação com os quatro elementos. Marcelo Albuquerque, 2013.

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Cores primárias de Leonardo, de acordo com Pedrosa. Marcelo Albuquerque, 2013.

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Perspectiva (desenho)

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Por Marcelo Albuquerque

Quando estudamos a paisagem na arte e a concepção de espaços arquitetônicos em desenhos artísticos e técnicos, nos deparamos com um conceito conhecido como perspectiva. Estudar a perspectiva é fundamental para compreendermos os vários estilos e épocas em que a paisagem foi concebida por artistas. Entretanto, a perspectiva não é só aplicada à paisagem, mas é um dos fundamentos do desenho em geral. Mas, então, o que é perspectiva?

PERSPECTIVA “saber ver”

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Um quadrado (polígono de quatro lados iguais) e um cubo (formado por seis faces quadradas). Marcelo Albuquerque, 2008.

A perspectiva corresponde a como o ser humano apreende visualmente seu ambiente e o transfere a outro suporte, seja aplicando a projetos técnicos ou artísticos. A perspectiva é o método que permite a representação de objetos tridimensionais (altura, largura e profundidade) em superfícies bidimensionais, através de determinadas regras geométricas de projeção, conforme a figura anterior.

A perspectiva não é somente usada na arte, mas também na arquitetura, engenharia e na computação, entre outras áreas. Artisticamente, podemos utilizar a perspectiva mais livremente, sem o rigor matemático exigido na arquitetura ou engenharia. Quando já entendemos com maior profundidade as questões básicas da perspectiva de forma rígida, podemos assim trabalhar mais intuitivamente, com a mão livre e sem ferramentas como réguas e esquadros. O nosso olhar já irá percorrer facilmente a paisagem e o entorno identificando os principais pontos de convergências e de profundidade.

Axonométricas (isométrica, dimétrica e trimétrica):

Segundo Ching, a axonometria é o desenho paraline de uma projeção axonométrica, em que todas as linhas paralelas aos três eixos principais são traçadas em escala, enquanto as linhas diagonais e curvas são distorcidas. As axonometrias ou perspectivas axonométricas se dividem em três categorias: isometria, dimetria ou trimetria.

A isometria é a situação onde os três eixos (xyz) estão separados por 120 graus. As faces principais estão inclinadas igualmente em direção ao quadro, de modo que seus três eixos principais são escorçados na mesma proporção.

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Isométria. Fonte: Versus. Disponível em: http://www.versus.pt/forma-espaco-ordem/desenhotecnico-4-6-perspectivas.htm. Acesso em 22 jan. 2008.

A dimetria dá-se quando temos dois ângulos iguais e o terceiro aparece mais longo ou mais curto que os dois.

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Dimetria. Fonte: Versus. http://www.versus.pt/forma-espaco-ordem/desenhotecnico-4-6-perspectivas.htm. Acesso em 22 jan. 2008.

A trimetria, por sua vez, dá-se quando as distâncias entre os eixos possuem ângulos distintos, ou seja, os trÊs eixos principais são escorçados em ângulos diferentes.

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Trimetria. Fonte: Versus. http://www.versus.pt/forma-espaco-ordem/desenhotecnico-4-6-perspectivas.htm. Acesso em 22 jan. 2008.

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Imagem do jogo SimCity: Utilização da axonometria na projeção da cidade. Fonte: http://simcity.ea.com/about/simcity4/screenshots.php. Acesso em 22 jan. 2008.

Gabinete, Cavaleira e Militar:

Projeção cilíndrica oblíqua, com uma das faces paralela ao plano de projeção. A projeção ortogonal de um círculo será uma elipse. Ainda, segundo esta classificação, podemos dizer tecnicamente que uma perspectiva cavaleira ou militar é uma perspectiva axonométrica dimétrica. Desta forma, quem via a perspectiva tinha a sensação de possuir uma visão de “olho-de-pássaro” sobre o terreno representado. Os termos cavaleira e militar foram cunhados porque eram perspectivas bastante utilizadas para projetar topografia de terreno em mapas destinados a fins de estratégia militar, quando se colocava a face paralela ao plano de quadro perpendicular ao plano do solo.

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Perspectiva de Gabinete. Fonte: Versus. http://www.versus.pt/forma-espaco-ordem/desenhotecnico-4-6-perspectivas.htm. Acesso em 22 jan. 2008.

Perspectiva linear ou cônica (ponto de fuga)

1 ponto de fuga: Na perspectiva com 1 ponto de fuga, o artista representa um objeto ou uma paisagem tridimensional projetando-o sobre um plano a partir de um ponto – o ponto de fuga, que se encontra sobre a linha de horizonte imaginária. Todas as linhas de projeção do desenho convergem para esse ponto, que, apesar de poder não estar representado, tem uma relevante presença na estrutura da obra. Os elementos mais distantes do olho são os que se encontram mais próximos do eixo de visão. Portanto, Ponto de Fuga é um ponto imaginário de onde as linhas de fuga se originam e se afastam em direção aos planos mais próximos do observador.

Perspectiva linear com 1 ponto de fuga para aulas de desenho. Marcelo Albuquerque, 2020.
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Linha do horizonte, ponto de fuga e linhas de fuga. Marcelo Albuquerque, 2008.

Linhas de fuga: São as linhas imaginárias que descrevem o efeito da perspectiva convergindo para o ponto de fuga (linhas convergentes pontilhadas da figura acima). É o afunilamento dessas linhas em direção ao ponto que geram a sensação visual de profundidade das faces em escorço dos objetos em perspectiva.

Linha do Horizonte: A linha do horizonte sempre se apresenta na altura do seus olhos. É por ela que o ponto de fuga corre. Abaixado, sentado ou em pé, a LH sempre permenecerá na altura dos olhos. Quando a LH não for tão visível, ao contrário da linha que separa o céu do mar, para facilitar sua identificação, coloque um lápis na posição horizontal em frente ao seus olhos, mantendo o pescoço ereto sem levantar nem abaixar a cabeça.

Todas as linhas paralelas entre si e que se afastam em direção ao horizonte apresentarão este “ponto de fuga” sobre o horizonte, e todos estes pontos poderão ser representados no Plano de Quadro.

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O ponto de fuga também pode ficar fora do Plano de Quadro. Linha do Horizonte sempre na altura dos olhos. Marcelo Albuquerque, 2008.

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O ponto de fuga sempre corre pela linha de horizonte, nunca fora dela, quando utilizamos 1 ponto de fuga. Marcelo Albuquerque, 2008.

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Leonardo da Vinci, na Santa Ceia, utilizou a perspectiva linear para compor este afresco. Note que o ponto de fuga esta na cabeça de Jesus, valorizando sua figura como ponto de convergência de todas as linhas. Adaptado por Marcelo Albuquerque, 2008.

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Os planos paralelos ao observador (Plano de Quadro) sempre permanecem parelos à linha do horizonte, enquanto os planos que seguem para o horizonte respeitam a angulação das linhas de fuga.Marcelo Albuquerque, 2008.

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Masaccio: Trindade. Santa Maria Novella, Florença. Fonte: Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Masaccio. Acesso em: 27 mar. 2017. Adaptado por Marcelo Albuquerque.

Masaccio (1401 – 1428), foi um pintor do início do Renascimento italiano em Florença, trabalhando ao lado de nomes como Brunelleschi e Donatello, sendo um dos responsáveis pelo rompimento gradual com o estilo gótico internacional, cujos antecessores remontam à Giotto.  Dentre suas grandes obras, para esse momento, destaca-se o afresco da Trindade, em Santa Maria Novella, em Florença, realizada por volta de 1427. Trata-se de uma representação em perspectiva ilusionista de uma capela lateral, pintada em afresco na nave lateral esquerda da igreja.

O afresco representa a cena da crucificação de Cristo, dentro de uma abóbada de berço com caixotões em perspectiva, cuja inspiração foi baseada nos arcos de triunfo da Roma Antiga, causando a sensação de profundidade. As linhas de fuga dirigem o olhar sobre a figura de Cristo na Cruz, sustentada por Deus Pai e para a pomba do Espírito Santo em voo, entre os dois.  Abaixo, na representação de um altar de mármore, estão as figuras da Virgem Maria e São João. Mais abaixo, estão os dois patrocinadores do afresco, provavelmente da família Lenzi, ajoelhados diante da cena sagrada, nas mesmas dimensões das figuras sagradas. Por fim, abaixo dos patrocinadores, encontra-se um esqueleto deitado com a inscrição em latim, traduzido como “Eu já fui o que você é, e isso é o que você será”, recordando a transitoriedade da vida terrena (memento mori).

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Masaccio: Trindade. Santa Maria Novella, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

Relacionando a perspectiva com o Renascimento, a obra é um tributo à racionalidade, com sua simetria e ordem austera. As duas figuras ajoelhadas orando, dos dois patrocinadores, formam a base de um triângulo que se fecha no topo da composição. Outros triângulos podem ser traçados a partir das cabeças dos personagens de Jesus, Maria e João. O ponto de fuga da composição localiza-se nos pés da Cruz de Cristo, sendo o ponto de vista do espectador, colocando-o como um participante da cena.

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Perugino: A Entrega das Chaves a São Pedro, Capela Sistina, 1481-82. Fonte: Wikipédia (domínio público). Adaptado por Marcelo Albuquerque.

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Piero dela Francesca: Flagelação, c. 1455. Fonte: Wikipédia (domínio público). Adaptado por Marcelo Albuquerque.

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Tintoretto. A descoberta do corpo de São Marcos, 1548. Pinacoteca di Brera, 1550. Fonte: Wikipédia (domínio público). Adaptado por Marcelo Albuquerque.

História: os antigos povos gregos já possuíam alguma noção do fenômeno perspéctivo, denominando-o como “escorço”, onde encontramos esforços de aproximação à problemática da representação do tridimensional no bidimensional. Entre todos os povos cujas manifestações artísticas podem ser consideradas pré-perspécticas, os gregos (e os romanos, em evolução à arte grega) são aqueles que mais próximo chegaram da perspectiva: em suas pinturas eles adotavam um método conhecido como escorço (que poderia ser definido como uma falsa perspectiva), ou perspectiva espinha-de-peixe. Os gregos não conheciam o ponto de fuga, mas o escorço produzia resultados próximos do da perspectiva e com razoável ilusão de profundidade. Na Roma antiga, podemos ver no Quarto Estilo de pintura os exemplos mais belos de perspectivas romanas da Antiguidade Clássica.

Rafael: Escola de Atenas. Afresco. Museus Vaticanos. Foto: Marcelo Albuquerque, 2019.

Foi durante o período do Renascimento que a perspectiva foi descrita. Filipio Brunelleschi foi um dos célebres arquitetos da Renascença que se dedicou aos estudos matemáticos da perspectiva linear, ao lado do contemporâneo artista Masaccio. Brunelleschi desenvolveu os seus estudos sobre a perspectiva com o objetivo de aplicação aos planos arquitetônicos. Leon Battista Alberti, teórico e profissional da arquitetura, pintura e escultura, é mais conhecido pela sua obra arquitetônica, contudo é frequentemente considerado como o autor das primeiras formulações sobre as leis da perspectiva.

Para estes artistas e arquitetos renascentistas, a perspectiva é harmonia, o produto de uma racionalidade superior e divina que confirma o acordo perfeito entre o homem e a natureza. Esta característica passou a se tornar recorrente na arte do Quatrocento: não apenas a perspectiva tornava-se uma maneira de demonstrar profundidade como também ela passou a ser um novo método compositivo. As pinturas passaram a apresentar uma cena única, coerente, ao invés de uma combinação de situações diversas.

2 pontos de fuga: Fazendo uso da perspectiva conseguimos criar sensações de profundidade e volume em um desenho. Porém poderíamos aumentar essa noção de profundidade e maior visão de outros lados. Para isso, adicionamos mais pontos de fuga: agora, os dois planos dos objetos vísíveis seguirão os planos das linhas de fuga, respeitando as suas respectivas angulações. Note que agora, desta posição, somente as linhas verticais mantem-se como tais e paralelas entre si. O resto foge em direção ao horizonte formando duas séries de linhas em profundidade e reunindo-se cada série em seu ponto.

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Os dois pontos de fuga também seguem pela linha do horizonte. Marcelo Albuquerque, 2008.
Perspectiva linear com 2 pontos de fuga para aulas de desenho. Marcelo Albuquerque, 2020.

3 pontos de fuga: Na perspectiva com três pontos de fuga, existem três conjuntos de linhas de fuga e três pontos de fuga. Nem as verticais nem as horizontais se mantêm paralelas. Todas as linhas seguem ordenadamente para os seus respectivos pontos de fuga. Como vimos antes, dois destes pontos de fuga se mantêm na linha do horizonte, porém o terceiro e necessário ponto de fuga sai dessa norma, ocupando um lugar acima ou abaixo da LH.

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Nesta perspectiva, as linhas verticais não são paralelas, elas seguem para o terceiro ponto de fuga. Marcelo Albuquerque, 2008.

Perspectiva aérea ou atmosférica:

A perspectiva atmosférica joga com variações de luz e cor. De forma a obter-se uma ilusão de profundidade, o artista emprega cores mais luminosas, contornos mais nítidos e textura mais espessa nos objetos mais próximos, sendo os mais afastados – que na tela são colocados mais acima – pintados com menos nitidez e normalmente com cores semelhantes às aplicadas no fundo. Isto porque a atmosfera terrestre, que contém poeira e umidade, se interpõe e afeta a luminosidade dos objetos.

Leonardo da Vinci construiu seu entendimento da perspectiva não apenas através da rígida formulação da perspectiva linear, mas também compreendendo a perspectiva levando em consideração o ar (ou a atmosfera) presente entre o observador e o objeto observado. Ele acreditava que não apenas o tamanho, mas também a aparência dos objetos mudava à medida que a distância entre objeto e observador aumentava. Da mesma forma, as linhas que delimitam a silhueta do objeto passariam a se tornar menos distintas com aquela distância. Estes dois elementos (atmosfera e bordas dos objetos) tornaram-se fundamentais na construção de sua perspectiva. Tal forma de entender a perspectiva veio, inclusive, a ser conhecida como perspectiva atmosférica. O pintor inglês Willian Turner foi um dos grandes adeptos da perspectiva atmosférica, onde explorou com muita intensidade os efeitos luminosos na pintura.

William Turner: Paisagem com rio e baia distantes, 1845. Museu do Louvre, Paris. Foto: Marcelo Albuquerque, 2019.

Na Monalisa, Leonardo da Vinci afasta as montanhas em último plano através da perspectiva atmosférica, criando um efeito esfumaçado suprimindo os detalhes ao fundo e realçando-os no primeiro plano. Em uma das diversas interpretações do quadro, as montanhas representam o mundo medieval encoberto por misticismo e ignorância em contraposição à figura da mulher, representada em seus mínimos detalhes e iluminada pela racionalidade renascentista. O homem renascentista tinha a consciência de seu lugar no tempo e espaço.

A perspectiva hierárquica é uma representação bidimensional. O desenho do espaço é mais simbólico que sensível e as figuras como acontecia entre os egípcios, obedecem à chamada convenção da perspectiva hierárquica: as figuras mais importantes são representadas em tamanho maior. Assim, no grupo, a disposição e tamanho das figuras é proporcional à importância de cada uma. Os exemplos mais importantes são encontrados na arte egípcia e bizantina. Outra forma seria por planos, ou seja, o que está mais próximo do observador ocuparia as partes inferiores do plano, enquanto as mais distantes ficariam acima, nas partes superiores.

Madonna e Menino Entronada com Anjos e Santos “Ognissanti Maestà“. Têmpera sobre madeira, 1306-10. Galeria Uffizi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque, 2015.

Durante o período medieval, não só a técnica representativa da perspectiva se perdeu, mas também a visão de mundo dos indivíduos alterou-se, de forma que grande parte do conhecimento teórico a respeito do assunto se perdeu. O interesse em representar o mundo espiritual, e não o natural, levou os artistas a utilizarem a perspectiva hierárquica. Antes do surgimento da perspectiva linear renascentista, as pinturas e desenhos normalmente utilizavam uma escala para objetos e personagens de acordo com seu valor espiritual ou temático: em uma pintura egípcia, por exemplo, o faraó certamente era representado em tamanho várias vezes maior que o de seus súditos. Especialmente na arte medieval, a arte era entendida como um conjunto de símbolos (paisagem de símbolos), mais do que como um conjunto coerente. O único método utilizado para se representar a distância entre objetos era pela sobreposição de personagens. Os jardins, tema recorrente na arte medieval, representavam um refúgio organizado por mãos humanas através da intervenção divina. O mundo natural ainda é perturbador, mas o homem já pode criar um universo fechado e tranquilo. O poeta florentino Petrarca é o primeiro artista a se libertar do “jardim” e gozar a vida campestre fora dos muros das cidades como fonte de felicidade e poesia, fazendo anotações e poemas sobre a natureza, mas ainda com uma certa culpa medieval “por admirar coisas terrenas” (CLARK, p.25).